fbpx

Os Heterônimos de Fernando Pessoa

“O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”

Talvez você já conheça esse famoso trecho, que por sinal faz parte de uma obra-prima criada por um dos poetas portugueses mais geniais: Fernando Pessoa. Com primor, ele trata de si mesmo e de “fingimento” em Autopsicografia.

Para criar poetas e escritores heterônimos como Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares, só poderia ser alguém que pudesse fingir muito bem ser outra “Pessoa”.

Fernando Pessoa costumava dizer que tinha a necessidade de aumentar o mundo, criando personalidades fictícias. E eis o belo resultado em um de seus poemas mais marcantes, escrito em 1931:

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


*Se você comprar no site da Amazon com nosso link, nós recebemos uma pequena comissão
e você estará contribuindo com a manutenção e continuação do Banco de Rimas.

Os Heterônimos de Fernando Pessoa

Mas o que são heterônimos?

Heterônimo diz respeito a uma pessoa fictícia ou personagem criada por escritores com o objetivo de tentar compreender e propagar diferentes maneiras de ver determinada realidade. A essa pessoa imaginária são atribuídas obras e personalidade própria – às vezes, mesclada com a do autor verdadeiro.

Conheça, a seguir, detalhes sobre estes personagens fictícios e alguns trechos de seus poemas.

1) Alberto Caeiro

É considerado o mestre de todos os heterônimos de Fernando Pessoa. É um poeta conectado com a natureza, avesso a pensamentos filosóficos, pois para ele pensar obstrui a visão e cria um mundo complexo e caótico repleto de incertezas. Bucólico, viveu grande parte de sua vida no campo, objetivando apenas ser poeta e nada mais.

A sua obra valoriza a simplicidade, sendo a sensação e percepção do mundo as únicas maneiras de compreender a realidade. Entre suas principais obras estão O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso, Poemas Inconjuntos e É Preciso Também Não Ter Filosofia Nenhuma – segue um trecho:

É Preciso Também Não Ter Filosofia Nenhuma

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

heterônimos fernando

2) Álvaro de Campos

Escreve poesia de maneira simples, direta e concreta. Essa forma de produzir suas obras está intrinsecamente ligada a sua personalidade, uma vez que seus poemas demonstram a insubordinação, agressividade e o inconformismo, que podem ser contatadas por meio de uma autêntica revolução lírica.

A obra deste heterônimo de Fernando Pessoa enquadra-se na escola modernista, pois Álvaro de Campos, que é engenheiro, está inserido nas ideologias dos anos de 1900. Desse modo, ele nos apresenta o mundo de forma objetiva e racional – típico de um homem que se deixa dominar pela máquina. Confira um fragmento de um de seus poemas:

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu, tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

[…]
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

3) Ricardo Reis

Conforme sua biografia inventada, ele é médico, nascido na cidade do Porto, em 1887. Ele é um profundo conhecedor da cultura clássica – estudado em um colégio jesuíta -, inclinando-se para o latim e mitologia greco-latina, sendo Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), um grande poeta da Roma Antiga, importante inspirador de sua obra. Ele também é adepto da filosofia de vida carpe diem, que significa “aproveite o hoje sem pensar no amanhã”, como uma maneira de buscar a felicidade, mas com tranquilidade evitando as perturbações mentais.

Entre os fatos mais famosos de sua trajetória estão o exílio ao Brasil no ano de 1919 por defender a monarquia de Portugal, durante a época da Proclamação da República naquele país.

No poema “Colhe o Dia, Porque És Ele” é possível perceber a sua preocupação em priorizar o presente momento, em oposição a viver do passado ou do futuro, já que o primeiro não volta mais e o segundo não há como prever exatamente:

Colhe o Dia, Porque És Ele

Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.


*Se você comprar no site da Amazon com nosso link, nós recebemos uma pequena comissão
e você estará contribuindo com a manutenção e continuação do Banco de Rimas.

4) Bernardo Soares

Considerado o alter ego e o “semi-heterônimo” de Pessoa, por ser o mais parecido com ele. Com esse nome, o poeta escreveu o Livro do Desassossego, considerado sua principal obra. A existência de Bernardo está ligada diretamente com a construção do livro, pois para Pessoa, ele prefere “a prosa ao verso”, a qual oferece liberdade na produção da escrita, sem as preocupações com rimas e melodias, por exemplo.

O que Soares deseja é a transformação do mundo, com possibilidades de viver em panoramas alternativos. Ele é a personagem central do Livro do Desassossego. Trata-se de um assistente de um contador que mora em Lisboa, Portugal, que relata a vida na cidade e sua relação com seus habitantes. Porém, ele chegou a escrever poemas, como este a seguir:

Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério de que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa é bastante famoso e respeitado por seus heterônimos. Com isso, ele foi vários poetas ao mesmo tempo. Estudiosos afirmam que essas figuras imaginárias giram em torno de 70, mostrando o quão plural foi sua construção literária. Dessa forma, não se pode estudar literatura portuguesa sem passar pelas criações desse grande escritor que viveu em defesa das palavras sábias e bem colocadas, contribuindo para um mundo mais criativo, no mínimo.

*Não conseguimos identificar a autoria da segunda e terceira imagem.
Se você souber, por favor, comunique-nos para darmos os devidos créditos.

Siga o Banco de Rimas nas redes sociais: